Por que o horror das vinícolas do Sul continua ocorrendo e o que isso tem a ver com a gestão de contratos?
Na última semana ficamos chocados com a notícia de mais um caso de uma empresa que mantinha seus “empregados” em condições análogas à escravidão. Só que dessa vez o que chamou a atenção é que essa mesma empresa possuía contratos com grandes vinícolas do sul do Brasil, que vendem seus vinhos não só aqui, mas também em várias partes do mundo.
As investigações ainda estão em andamento para apurar até onde essas tradicionais vinícolas sabiam do caso e se elas possuem responsabilidade quanto às pessoas colocadas naquela situação, mas a reflexão que fica é: por que situações como essa continuam acontecendo? E o que isso tem a ver com a gestão de contratos?
A resposta à primeira pergunta talvez seja óbvia e já conhecida de todos: a busca pelo maior lucro possível. É uma matemática básica: o maior lucro possível é obtido quando se consegue maximizar as receitas e minimizar as despesas.
Só que nessa balança as pessoas são sempre colocadas como despesa. E foi essa lógica que levou as vinícolas a contratar uma empresa terceirizada que provavelmente ofereceu seus serviços pelo menor preço possível em comparação às demais.
Em um primeiro momento, isso não parece errado. Toda pessoa e todo empreendedor, seja grande ou pequeno, sonha em ter o maior lucro possível. Quem não quer ter uma receita gigantesca e uma despesa mínima?
Mas o que aconteceu no Rio Grande do Sul, a não ser que seja um caso de profunda má-fé, tem tudo a ver com gestão de contratos!
Como dito, não há nada de errado em se reduzir custos. O que está errado é contratar uma empresa terceirizada e não ter controle sobre ela. E não estou falando aqui de controle operacional, mas de controle jurídico!
Ora, um contrato de terceirização bem elaborado prevê várias obrigações da empresa terceirizada, mas também grandes responsabilidades de quem está tomando o serviço, tais como: obrigatoriedade de receber do prestador documentos dos seus empregados, conferir pagamento de impostos, de contribuições trabalhistas, e principalmente de indicar um gestor do contrato, ou seja, uma pessoa que tem a função de verificar não só a saúde financeira da terceirizada, mas também a sua saúde operacional.
Ironicamente, contratos desse tipo, quando bem elaborados, normalmente possuem uma cláusula de declaração da empresa prestadora de que não se utiliza trabalho infantil nem de pessoas em situação análogas a de escravo…
Outra ironia é ouvir de pessoas e empresários que o contrato é só um papel, mas que “esse papel” tem que existir para “resguardar” as partes. Isso acontece não só em contratos de prestação de serviços, mas na grande maioria das contratações: as partes acham que um contrato é capaz de, sozinho, “salvá-las” de problemas. Imagina-se que, se o contrato diz que é responsabilidade da terceirizada zelar por seus empregados, a empresa tomadora do serviço está “segura”.
Porém, a gestão de um contrato vai muito além de simplesmente elaborar um documento, controlar suas assinaturas, arquivá-lo e checar o seu prazo de vigência. Ela literalmente faz com que aquilo que está no papel seja efetivamente exercido na “vida real”.
E agora estamos testemunhando a maior falha que poderia ter ocorrido: grandes vinícolas que, aparentemente, não geriram seus contratos como deveriam e agora se veem no meio de uma enorme crise humanitária que impacta diretamente a sua imagem e reputação.
Há um enorme número de pessoas postando na internet e nas suas redes sociais que não comprarão mais vinhos dessas marcas, mas isso pode ser só a ponta do iceberg: outras empresas e até mesmo outros países poderão simplesmente parar de comprar e importar esses vinhos, resultando em um enorme prejuízo financeiro.
Portanto, temos que parar de ver um contrato como um simples pedaço de papel que assinamos e guardamos em nossos arquivos físicos ou digitais. Contratos são instrumentos que devem ser levados muito a sério, afinal eles criam direitos e obrigações! Não há contrato igual ao outro, não há “contrato padrão” nem “cláusula que é assim mesmo”.
Enquanto não levarmos a gestão dos contratos a sério, situações como a do Rio Grande do Sul continuarão a ocorrer. E o que é pior: as grandes e tradicionais empresas terão de arcar com todas as consequências, seja quanto à reparação dos danos causados às pessoas, seja quanto aos danos à sua imagem e reputação.
